Um Excesso da Natureza

Serpentear as curvas do Douro devia constar daquelas listas que enumeram o que não podemos deixar de fazer antes de morrer. É um lugar comum mas quem não está de acordo que levante o braço. Que o diga Luís Soares Duarte, enólogo nascido em Moçambique mas de alma duriense. “…o Douro é um excesso da natureza. Excesso da natureza transformado pelo o homem. A beleza do Douro, ou o contraste da beleza e rusticidade desta região, é um facto. Estamos numa região de montanha que foi trabalhada pelo o homem e que criou toda esta paisagem vitícola mesmo sendo muito rústica. A beleza é quase luxuriante. Temos as cores da vinha e vemos todas as curvas de nível e os terraços de vinha, que não é para serem belos. São belos porque são muito bem trabalhados em termos de viticultura.”

Luís percorre há 25 anos estas curvas do Douro para criar e ajudar a criar um dos bens mais preciosos da região. Para além do seu próprio vinho, Luís é consultor em diversas quintas. Um prazer e um trabalho árduo em prol de uma das melhores viticulturas do mundo. “Numa região de montanha e tão secular como é esta – foi a primeira região demarcada do mundo – é importante que haja muita diversidade, e essa diversidade faz-se não só pela região, que é muito diferente de zona para zona, mas faz-se através do produto e pela identidade de cada um dos produtores.”

E haverá um perfil de vinho Luís Soares Duarte? “O meu perfil é um perfil mais telúrico, mais terroso, mais da terra, não tão floral, não tão frutado. É um gosto muito pessoal. Acima de tudo é estar associado à terra, ou seja, à rudeza da terra. O telúrico vem da terra, um homem telúrico é um homem do trabalho da terra, um homem que gosta e que ama muito a terra.”

Para Luís, a actividade de enólogo está obrigatoriamente ligada à observação da natureza e ao gosto pela gastronomia. A natureza é o cenário onde trabalha, e o vinho é para acabar de ser partilhado à mesa, numa refeição entre família e amigos.

Mas para chegar ao vinho, há o galantear anual da vinha para chegar à festa que é a vindima, altura em que o Douro dá tudo por tudo para oferecer o melhor bago de uva. Entre 30 a 45 dias, mulheres e homens durienses vindimam perto de 50 mil hectares de vinha. Investem esforço, dedicação e a vida para proporcionar ao mundo os melhores vinhos.

É em homenagem às vindimas que surge a Massa de Feijão com Carne. Luís Soares Duarte foi buscar a receita aos seus tempos de gaiato, quando andava nas vindimas socalco acima, socalco abaixo, entre a apanha da uva e namoricos. É um prato rico e substancial, generoso em ingredientes, precisamente para retribuir a generosidade e agradecer toda a labuta dos vindimantes, A riqueza da massa, carne e feijão garantirá o conforto no estômago para mais uma tarde de trabalho.

Ao fazer e partilhar esta receita, Luís revive a tradição da cozinha nos potes, tal como era feita há mais de 30 anos. “Eu particularmente gosto muito porque há um sabor, há um volume de boca, uma textura diferente quando ela é feita nos potes. Não quer dizer que seja melhor ou pior, mas há uma textura muito própria do trabalho em pote, e é, mais uma vez, como nos vinhos – fazer sempre ligações ao passado, tentarmos ao máximo nunca perder as raízes que se construíram, que se vão construindo.”

Douro Sublimado

“O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.”

Miguel Torga, “Diário XII”

Fotografias de Manuel Gomes da Costa

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